quinta-feira, 17 de junho de 2010

Oração da Árvore

“Obrigado a todas as árvores que estiveram ao meu lado enquanto eu era apenas uma sementinha, pois, deixaram que caísse sobre mim um pouquinho de cada uma de vocês. Obrigado solo escuro por permitir que eu me enraizasse, ao oferecer aquilo que havia de vida onde outrora eu só via a morte. Obrigado luz do sol, você esteve presente, o tempo todo, todos os dias, iluminando meu desenvolvimento: você me despertou a vontade de crescer ao me dedicar sua luz, e assim desejei buscá-la, e subi rumo à copa. Tempestades e ventos avassaladores, muito obrigado, pois, ao invés de me destruir, fizeram se desprender de mim aquilo que eu não mais precisava, levando pequenas folhas de história, que poderiam se tornar fonte de vida para outras sementinhas. Estas, assim como eu, um dia ao se encontrar no solo, precisarão de força, para que em meio a tantos destroços consigam se arraigar e mergulhar nas profundezas do solo, a fim de crescerem tão fortes quanto possível lhes for.
Dessa maneira, quando aos poucos meu tempo de partir chegar, saberei que enquanto estive viva espalhei entre as árvores do meu bosque minhas preciosas folhinhas, que só vieram a existir devido ao fato de um dia outras folhas tão belas e às vezes, tão pesadas, terem caído sobre mim enquanto na superfície eu estava. Hoje, compreendo que embora naquele momento me parecesse assustador estar sozinha em um lugar desconhecido, foi por medo que mergulhei no solo, e lá no fundo, na escuridão e no silêncio, passei a sentir aquilo que antes meus sentidos não me permitiam perceber: que em cada um daqueles destroços comportava algo maravilhoso. Se eram destroços, eram destroços de algo que um dia foi vida, pois, nem mesmo as pedras estão ali em vão. Peço perdão, pois, apesar de ter que crescer sozinha, com um gigantesco sentimento de solidão, quando eu era sementinha, eu era tão pequenina que em minha pequenez só enxergava a mim mesma, aos meus medos e a minha dor por estar no chão. Eu não enxergava as tantas outras árvores ao meu lado.
Digo então, mais uma vez, obrigado. Obrigado a todo o bosque que me rodeava enquanto eu me debatia no árduo processo de desenvolvimento. Tenho certeza que suas folhagens me fizeram sombra nos momentos de intensa luminosidade para que eu não me cegasse, e que as folhas e flores podres que coincidentemente caíram sobre mim, foram tão importantes quanto as mais belas orquídeas derrubadas: foram elas que me fizeram procurar uma saída no fundo do meu ser para que um dia eu brotasse. Obrigado vaga-lumes, foram vocês que não me deixaram no abandono da noite quando, ainda brotinho, eu mal podia ver as estrelas. Obrigado a todos os pássaros que em mim pousaram, e que deixaram saudades quando partiram: vocês trouxeram consigo histórias e sentimentos que ali, na singularidade do meu bosque, eu jamais poderia vivenciar. E muito obrigado às borboletas,         que além de colorirem o céu com suas infinitas cores, ao pousarem em minha copa para descansar, trouxeram para mim o pólen do amor, e ao levantarem vôo, sem saber deixaram em mim a capacidade de amar.”
                                                                                                                                 Flávia Braga.

O amor e o Ser

O amor e o Ser

Encontrar-se com o amor é como voltar no tempo, é como viajar olhando para a as magníficas formas das nuvens quando somos crianças. É vivenciar a luz de Psyqué, ou pelo menos, voltar a se interessar por sua luminosidade marcante, ou seja, por aquilo que passamos a vida inteira escondendo de nós mesmos sem nos permitir descobrir e vivenciar pelo menos um pouquinho a grandiosidade que é o viver, o mundo, os seres.
Vivemos em buscas materiais enquanto ainda não estamos preparados para buscar a nós mesmos. Na tentativa de evitar a angústia, buscamos conhecer e nos apegar àquilo que podemos experienciar de forma rasa e insignificante: aos objetos, e não às pessoas, à si mesmo e ao mundo. Pior ainda, muitas vezes, criamos conosco e com os outros relações objetais: compramos, manipulamos, e depois, sem o mínimo esforço, jogamos fora, já que tudo pode ser descartável. Assim o aprendemos.
Mas, em nossa condição de Devir, podemos sempre rever nossos limites e possibilidades. Certa vez, Sônia Viegas disse em um de seus textos que, “a força criadora é o amor”, e então, entendi que é o amor que nos revela a nós mesmos e ao próximo, o amor, como dizem, nos torna “bobos” (e como é bom ser bobo!). O amor aparece como uma lente para aqueles que por algum motivo, já não conseguem ou não aprenderam a enxergar a beleza da vida.
O amor libertador e criador é ao mesmo tempo fonte de angústia, já que para amar o outro precisamos nos conhecer, nos aceitar e assim nos amar, percurso esse doloroso, pesado e angustiante, já que a maioria de nós entendeu que o melhor a se fazer diante do desconhecido é evitá-lo. Evitamos a nossa condição existencial, renunciamos ser quem somos para fingir viver melhor, e paradoxalmente “sofremos justamente por não ser”. Assim, enquanto escolhemos viver na alienação e na mentira, o que edificamos sobre nosso ser só nos possibilita novas impossibilidades, reduzindo pouco a pouco nossa liberdade. Só é livre aquele que sabe-se a si mesmo, já que não podemos escolher quais cores daremos à nossa vida se nos encontrarmos na escuridão.
Na busca da verdade do ser, porém, somos colocados frente ao absurdo: a infinitude de cores é apavorante, e nossa alma, por mais que queira colorir-se por todas elas, só consegue vislumbrar uma pequena parte dessa incrível diversidade, e assim, ela pode escolher colorir-se e colorir ao outro, com as mais belas cores, alcançando a aquarela subjetiva do amor. Pena que chegar ao amor de forma a atingir a reciprocidade seja um caminho traçado por poucos, a maioria de nós, parece conformar-se com o amor de mão-única: amar a mentira que inventou sobre si mesmo; amar a mentira que criou sobre o outro a partir de si mesmo; ou ainda desejar sempre ser amado.
Mas, como sabemos, é na dialética que vivemos, existimos e somos. Somos ao mesmo tempo amor e ódio, alegria e tristeza, vida e morte, um ser incompleto que busca completude na incompletude do outro, existimos a partir do mundo e o criamos, somos parte de um todo cuja soma das partes é maior que o todo, estamos sozinhos na presença do outro a partir do qual nos constituímos. Somos “meio animal e meio deus”, essa contradição interna e externa, esse ser que vive “condenado à liberdade”. Em suma, somos um ser que tem como uma das melhores saídas: angustiar-se, ainda que passemos a maior parte do tempo “nos ocupando da trivialidade do cotidiano”. 
Amar ou desejar? Desejo de amar ou de ser amado? Desejo de que afinal? Poderíamos ser levados a responder de modo psicanalítico: por não desejarmos a nós mesmos, o que nos restou, foi desejar o desejo do outro, (e do outro, e de mais outro) numa busca fatigante. Então, me pergunto com tristeza: e o amor, onde fica? Ainda nos interessamos por ele, ou será esse o nosso desejo? A resposta competirá a cada ser individualmente, aos significados que apreendeu de acordo com sua história, suas vivencias. Eu particularmente, vivo de acreditar no amor.
                                                        Flávia Braga.